Para incluir e tratar igualmente todos
os alunos e alunas, inclusive os que se identificam com gêneros
diferentes aos seus biológicos, escolas dos Estados Unidos estão
aprendendo empiricamente a se adaptar a uma realidade longe do branco e
preto que definem que roupas, brinquedos e atitudes são de meninos ou
de meninas. O assunto foi tema de longa reportagem da agência de
notícias Associated Press. O publica abaixo um resumo com os principais trechos da reportagem da AP:
A presença de crianças e adolescentes
que adotam outra identidade de gênero é pequena nas escolas, mas tem
crescido. No distrito escolar da cidade de São Francisco, por exemplo, o
gerente de programas de saúde escolar Kevin Gogin afirmou à reportagem
que, de acordo com uma pesquisa com os estudantes, 1,6% dos alunos de
ensino médio e 1% dos alunos dos anos finais do ensino fundamental se
identificavam como transgênero ou variante de gênero.
As crianças dos anos iniciais não foram
incluídas na pesquisa, mas Gogin disse à AP que o distrito já havia
identificado alunos e alunas nesta situação nestes anos.
Com Ryan, que hoje cursa o quarto ano do
fundamental em um subúrbio da cidade americana de Chicago, a adoção de
outro gênero aconteceu ainda mais cedo. Desde os dois anos de idade, ela
mostrava atração pela cor rosa e usava as calças do pijama para
improsivar uma peruca de cabelos compridos. Na época, ela foi
diagnosticada com desordem de identidade de gênero, e os pais começaram a
incentivar atividades e objetos típicos de meninos. Quando a estratégia
não deu certo, passaram a proibir qualquer menção ou brincadeira
tipicamente feminina. Ao perceberem que o efeito da repressão não seria
benéfico, decidiram aceitar as escolas da filha.
Desde 2012, a "desordem de identidade de
gênero" foi removida da lista de doenças de saúde mental, e outros pais
de crianças que não se encaixam no padrão polarizado de meninos e
meninas recebem o apoio de médicos e especialistas que não enxergam mais
esse fenômeno como algo a ser consertado.
Para alguns deles, a evolução da
percepção sobre pessoas transgênero (em suas várias formas, desde que
quem se identifica com o gênero oposto até quem se considera parte homem
e parte mulher) vai evoluir da mesma forma como a visão a respeito da
homossexualidade, que há cerca de 40 anos deixou de ser considerada uma
doença mental.
Contra o bullying na escola e na família
Ainda
no jardim de infância, ela decidiu, com o apoio dos pais, abandonar a
rotina de vestir roupas de menino na escola e trocá-las, assim que
chegava em casa, por saias e uma blusa combinando. No primeiro dia da
mudança, a mãe dela, Sabrina, foi à sala de aula explicar aos
coleguinhas que Ryan gostava de se vestir como menina e fazer coisas de
menina.
Algumas crianças contaram suas próprias
histórias que quando vestiram roupas indicadas a outros gêneros por
motivos variados, e o grupo superou a notícia. As crianças do ensino
fundamental, porém, começaram a perseguir Ryan na hora do recreio. Para
evitar aborrecimentos, a diretoria da escola garantiu a aplicação da
política de intolerância ao bullying.
O processo, porém, não foi totalmente
fácil, segundo contou a mãe da criança, Sabrina, à reportagem da AP.
Antes da escola, Ryan começou a vestir roupas convencionalmente
atribuídas a meninas em parques, no bairro e com a família.
Algumas pessoas não aceitaram a mudança,
criticaram o apoio dos pais por acharem Ryan nova demais para saber o
que queria, ou simplesmente pararam de reconhecer a criança. "Era como
se ela não existisse mais", disse a mãe. A posição dela e do pai foi,
além de mudar de bairro e buscar uma escola que parecesse mais aberta,
enfrentar o problema de frente e com uma posição clara: eles reuniram os
parentes e lhes informaram que estariam do lado da criança.
"Nosso compromisso é que nossos filhos
estejam em um ambiente acolhedor e amoroso, e se alguém não concorda com
isso, então não vai estar por perto", explicou o pai de Ryan, Chris.
A tolerância na prática
"Por
uma margem grande, a maioria dos educadores quer fazer a coisa certa e
quer saber como tratar todas as suas crianças igualmente", afirmou à
reportagem da AP Michael Silverman, diretor-executivo do Fundo de Defesa
Legal e Educação Transgênero da cidade de Nova York. Segundo ele,
atualmente 16 estados americanos e o Distrito de Columbia (capital dos
EUA) já contam com leis que garantem os direitos de pessoas
transgêneros. Mas, mesmo nos estados que não contam com essa legislação,
os distritos escolares estão geralmente abertos à orientação para a
diversidade.
O problema, porém, é que as práticas de
aceitação e tolerância à diversidade ainda não são muito difundidas.
Entre as perguntas mais comuns estão a definição de qual banheiro a
criança vai usar, onde ela vai se trocar para a aula de educação física e
que pronome os professores e colegas devem usar para chamar a criança
transgênero.
Dados recentes mostram que a falta de
informação e socialização entre os estudantes transgêneros podem ter
resultados alarmantes.
Um pesquisa nacional feita em 2010,
feita em conjunto entre o Centro Nacional pela Igualdade Transgênero e
pela Força Tarefa Gay e Lésbica Nacional, mostrou que 41% das pessoas
transgêneros entrevistadas no país admitiram que já tentaram cometer
suicídio. Mais da metade (51%) delas afirmou que sofreu bullying,
assédio, agressão ou expulsão da escola por serem transgêneros.
Scott Morrison, que mora no estado de
Oregon há três anos, e há dois fez a transição de menina para menino,
afirma que o apoio da família, dos amigos e de sua nova escola,
inclusive da ajuda de um conselheiro escolas, fez toda a diferença no
processo, inclusive evitando que ele considerasse tirar a própria vida.
"A identidade de gênero é provavelmente a
parte mais importante de mim, é a descoberta mais importante que fiz
sobre mim mesmo", disse o formando do ensino médio à AP.
Para Eli Erlick, uma aluna transgênero
que vai terminar o ensino médio neste ano em Willits, uma pequena cidade
no norte da Califórnia, a transição de menino para menina começou aos 8
anos. Na época, há cerca de dez anos, a sensação que ela descreveu à
agência era de ser "a única pessoa desse jeito". Além de ser
ridicularizada em público pelos próprios professores, a aluna não tinha
permissão para usar o banheiro das meninas. Para contornar o problema,
ela fingia alguma doença para poder ser liberada e usar o banheiro de
casa.
Em geral, porém, ela afirma ter notado
uma mudança geral nas atitudes em relação às diferenças entre
identidades de gênero. Hoje, Eli coordena uma organização que treina e
orienta escolas a lidar com pessoas como ela, além de ter ajudado seu
próprio distrito escolar, além de outros na Califórnia, a definir
políticas sobre o tema.
A inclusão escolar na Justiça
Ainda
que haja mais conscientização, nem todas as relações entre alunos
transgêneros e suas escolas são pacíficas, e algumas já foram parar na
Justiça. Michael Silverman, de Nova York, representa a família de Coy
Mathis, uma garota transgênero de seis anos do estado de Colorado.
O motivo do processo foi o fato de a
escola ter definido que a criança seria obrigada a usar um banheiro
separado das demais meninas.
"Se fosse só um banheiro, então a opção
neutra estaria bem. Mas é sobre realmente ser aceita", disse a mãe de
Coy, Kathryn Mathis. "O que acontece agora é que eles te chamam de
garota, mas você não é realmente uma garota, então não te deixam agir
como uma. E isso faz um estrago incrível."
A reportagem da Associated Press procurou a escola de Coy, mas ela não se pronunciou.
Os precedentes abertos nos últimos anos e
a evolução da posição de especialistas sobre a condição de pessoas
transgêneros têm feito com que as crianças e adolescentes que se
identificam com um gênero diferente do biológico possam viver mais
abertamente e com maior apoio.
"Essas crianças estão começando a ter
uma voz, e acho que isso é o que tem feito as coisas interessantes e
desafiadoras --e difíceis, às vezes--, dependendo da família, da criança
ou da escola", afirmou à AP Roberto Garofalo, diretor do Centro de
Gênero, Sexualidade e Prevenção de HIV do Hospital Infantil Lurie, de
Chicago.
No caso de Ryan, sua integração escolar
tem tido, até agora, poucas consequências negativas. Uma de suas colegas
do quarto ano do fundamental resumiu tudo com uma frase: "A maioria das
pessoas esqueceu que um dia ela já foi um menino", disse a garota.