Sinto a necessidade de abordar uma velha questão, que mesmo sendo velha, tenho certeza que continuará a ser posta na ordem do dia através de perguntas e controvérsias acerca das diferenças (opacas, já vou adiantando) entre “travestis” e “transexuais”. Acho interessante falarmos sobre isso pensando o dia da visibilidade trans*, já que muitas vezes (senão todas), são a partir destas duas categorias que pessoas trans* são designadas e, portanto, trazidas para a ordem da representação e do cognoscível (e também para uma ordem do político, como espero mostrar). Quando se pergunta acerca do “estatuto” de uma pessoa trans* – se ela é “travesti” ou “transexual” – não está ocorrendo apenas uma mera pergunta se ela “é travesti ou transexual”. Este tipo de pergunta está atrelada a uma memória discursiva sobre os sentidos de “travesti” e “transexual”, que é rememorada no momento da enunciação, tencionando constantemente os sentidos sobre essas duas palavras na enunciação.
Autores como Bruno César Barbosa e Jorge Leite Júnior¹, mostram como essas categorias médicas referentes à transgeneridade mudaram com o passar do tempo. O que parece ocorrer é uma variável flutuação dos termos “travesti” e “travestismo” (sic); “transexual” e “transexualismo” (sic); “transtorno de identidade de gênero” e “disforia de gênero” (dentre outras variações). Ora são termos mais ou menos intercambiáveis, ora não; ora significam mais ou menos a mesma coisa e ora não². Fica bastante evidente que se trata, antes de uma questão meramente médica ou psíquica, afeita aos campos da psiquiatria e psicologia, uma questão linguística, por estarem expostas questões da significação de palavras – e seus equívocos – permeados e indissociáveis de seus contextos históricos. Percebem-se aí como certas palavras tem uma “importância” pela qual o discurso médico insiste, através de inúmeros pequenos e contínuos deslocamentos, uma apreensão definitiva, legitimada e verdadeira do real.
Os esforços presentes nas diversas categorizações e subdivisões das identidades transgêneras, tanto inicialmente feitas por Harry Benjamin nos anos 50 e 60 quanto pelos atuais manuais diagnósticos como o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) e CID (Classificação Internacional de Doenças), operam com o intuito de produzir um norte capaz de conter, pelas palavras e nosologias, a diversidade tida como patológica do gênero. Essas categorizações, com um suposto intuito inicial de descrever objetivamente um “fenômeno”, acabam por prescrever e idealizar, dentro da própria categoria abjeta da transgeneridade, corpos e identidades mais ou menos inteligíveis, utilizando para isso as categorias “travesti” e “transexual” e outros conceitos analíticos como “falso” ou “pseudo”, “diagnósticos diferencias” e “intensidades” (referentes aos tidos “desvios” de gênero).
Afinal de contas, o que está em jogo é o preciso “diagnóstico” capaz não apenas de desvelar uma suposta verdade essencial e anterior sobre corpos, identidades e práticas, mas também capaz de imputar um poder colonizador de natureza biomédica: o “tratamento” tido como correto. Médicos e profissionais psi, ao conceber os sujeitos trans* como completamente incapazes de decidir sobre si mesmos, são tidos como corpos passivos que o conhecimento médico deve preencher. Para isso, o poder médico concebe práticas que julgam proteger os sujeitos trans* de si mesmos. É então, por exemplo, que o mito³ da correlação mágica e completamente linear entre cirurgias de redesignação sexual e suicídios é trazido à tona para alertar sobre os “perigos” de uma maior autonomia para as pessoas trans*. As pessoas trans* são destituídas de autonomia sobre seus corpos, narrativas e identidades através destas formas perversas de controle cispatriarcal. E estas formas de dominação irão articular a dicotomia “travesti-transexual” em seu favor.
Para isso, vão operar discursos que procuram estabelecer uma coerência inequívoca entre as palavras, produzindo então uma verdade essencializada sobre esses dois termos. Essa construção de coerência, que visa esconder, por um processo de naturalização apoiada pelas ciências médicas e psi, o caráter contraditório dos termos, vai conseguir operar um controle biopolítico dos corpos e identidades trans*, na medida em que estes termos são acionados e articulados pelos saberes e poderes da medicina e do jurídico enquanto “mediadores” de direitos civis. Para citar dois exemplos clássicos: as resoluções sobre o “diagnóstico” (que permitirá uma pessoa trans* acessar cuidados básicos de saúde) e dos processos judiciários de retificação de documentos (que são condicionados por laudos psi/médicos/sociais pautados, em sua maioria, na patologização da transexualidade). Este controle está guiado por um processo de legitimação4 da identidade transexual em detrimento da travesti. Isso ocorre através de uma burocratização do acesso a atendimento médico e jurídico, pela estrita necessidade da apresentação do laudo de transexualidade. Percebam que quando falamos sobre o tal “laudo”, enquanto um dispositivo normativo requerido para o acesso à cidadania, não é qualquer laudo, na medida em que um hipotético laudo atestando travestilidade jamais teria o mesmo valor que aquele atestando a transexualidade. Nem ao menos concebemos a ideia de um laudo de travestilidade, pois é a transexualidade a categoria almejada e regulada. Isso se torna especialmente cruel, na medida em que reconhecemos a existência de pessoas travestis que requerem certas demandas que são as mesmas das pessoas transexuais, e que são ameaçadas por este dispositivo de terror que é o laudo médico/psi/social. Em última instância, a exigência do laudo de transexualidade como mediador de direitos humanos é uma forma de excluir pessoas trans*, em especial, travestis, negrxs, deficientes e pobres.
Podemos, a partir do momento que compreendemos as relações de poder que articulam essa dicotomia identitária, fomentar novas formas de se pensar e entender as identidades travesti e transexual: extrapolando o “bom-senso” médico-psiquiátrico e jurídico; reafirmando a humanidade das pessoas trans*, em especial das travestis; exigindo a desburocratização do acesso a direitos civis para a população trans* e o respeito à auto identificação; apontando para a própria relação de poder (que procura em si mesma se mostrar inexistente para garantir sua dominação) que está sendo articulada pelos discursos médicos e jurídicos e denunciar os cinismos políticos no que se referem políticas públicas acerca da transgeneridade; problematizar, questionar e borrar os limites entre as duas categorias, ao apontar para os efeitos de pré-construído (o efeito que produz uma transparência e a necessidade de um já-dito para fazer sentido) delas, elaborar, enfim, formas emancipatórias, descolonizadas, empoderadoras e não prescritivas de “ser” travesti ou transexual e negar os entendimentos cisgêneros e patriarcais sobre nossas identidades trans*/femininas.
Isso significa que não estamos discutindo sobre se travestis fazem a cirurgia de redesignação sexual ou não ou outra coisa parecida (como frequentemente ocorrem em discussões homéricas e desnecessárias), mas sim entender que não existe forma correta e definitiva de ser travesti e transexual. Quero, portanto, acirrar e problematizar esses termos a ponto de extrapolar uma nova perspectiva que pode soar absurda que se refere em última instância para a impossibilidade de uma definição unívoca para tais palavras e que, portanto, “existem” e ao mesmo tempo “não existem” as “diferenças” entre travestis e transexuais.
Vamos entender como se constrói a subalternidade5 da identidade travesti em relação à transexual e não naturalizar esta relação. Trata-se de colocar estas palavras de volta ao lugar em que pertencem ao compreendê-las na história e, portanto, enquanto materialidades contraditórias do discurso. Desta forma, se tornam passíveis de serem contestadas as articulações ideológicas destas palavras que corroboram cissexismo. Por fim, cabe desvelar o absurdo e perversidade que é controlar e oprimir pessoas trans* por meio de suas próprias categorias identitárias (que são também, em última instância, palavras). O empoderamento se dará também através das palavras e acredito que as palavras “travesti” e “transexual” trazem à cena um palco privilegiado e necessário para práticas de resistências transfeministas.
Autores como Bruno César Barbosa e Jorge Leite Júnior¹, mostram como essas categorias médicas referentes à transgeneridade mudaram com o passar do tempo. O que parece ocorrer é uma variável flutuação dos termos “travesti” e “travestismo” (sic); “transexual” e “transexualismo” (sic); “transtorno de identidade de gênero” e “disforia de gênero” (dentre outras variações). Ora são termos mais ou menos intercambiáveis, ora não; ora significam mais ou menos a mesma coisa e ora não². Fica bastante evidente que se trata, antes de uma questão meramente médica ou psíquica, afeita aos campos da psiquiatria e psicologia, uma questão linguística, por estarem expostas questões da significação de palavras – e seus equívocos – permeados e indissociáveis de seus contextos históricos. Percebem-se aí como certas palavras tem uma “importância” pela qual o discurso médico insiste, através de inúmeros pequenos e contínuos deslocamentos, uma apreensão definitiva, legitimada e verdadeira do real.
Os esforços presentes nas diversas categorizações e subdivisões das identidades transgêneras, tanto inicialmente feitas por Harry Benjamin nos anos 50 e 60 quanto pelos atuais manuais diagnósticos como o DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) e CID (Classificação Internacional de Doenças), operam com o intuito de produzir um norte capaz de conter, pelas palavras e nosologias, a diversidade tida como patológica do gênero. Essas categorizações, com um suposto intuito inicial de descrever objetivamente um “fenômeno”, acabam por prescrever e idealizar, dentro da própria categoria abjeta da transgeneridade, corpos e identidades mais ou menos inteligíveis, utilizando para isso as categorias “travesti” e “transexual” e outros conceitos analíticos como “falso” ou “pseudo”, “diagnósticos diferencias” e “intensidades” (referentes aos tidos “desvios” de gênero).
Afinal de contas, o que está em jogo é o preciso “diagnóstico” capaz não apenas de desvelar uma suposta verdade essencial e anterior sobre corpos, identidades e práticas, mas também capaz de imputar um poder colonizador de natureza biomédica: o “tratamento” tido como correto. Médicos e profissionais psi, ao conceber os sujeitos trans* como completamente incapazes de decidir sobre si mesmos, são tidos como corpos passivos que o conhecimento médico deve preencher. Para isso, o poder médico concebe práticas que julgam proteger os sujeitos trans* de si mesmos. É então, por exemplo, que o mito³ da correlação mágica e completamente linear entre cirurgias de redesignação sexual e suicídios é trazido à tona para alertar sobre os “perigos” de uma maior autonomia para as pessoas trans*. As pessoas trans* são destituídas de autonomia sobre seus corpos, narrativas e identidades através destas formas perversas de controle cispatriarcal. E estas formas de dominação irão articular a dicotomia “travesti-transexual” em seu favor.
Para isso, vão operar discursos que procuram estabelecer uma coerência inequívoca entre as palavras, produzindo então uma verdade essencializada sobre esses dois termos. Essa construção de coerência, que visa esconder, por um processo de naturalização apoiada pelas ciências médicas e psi, o caráter contraditório dos termos, vai conseguir operar um controle biopolítico dos corpos e identidades trans*, na medida em que estes termos são acionados e articulados pelos saberes e poderes da medicina e do jurídico enquanto “mediadores” de direitos civis. Para citar dois exemplos clássicos: as resoluções sobre o “diagnóstico” (que permitirá uma pessoa trans* acessar cuidados básicos de saúde) e dos processos judiciários de retificação de documentos (que são condicionados por laudos psi/médicos/sociais pautados, em sua maioria, na patologização da transexualidade). Este controle está guiado por um processo de legitimação4 da identidade transexual em detrimento da travesti. Isso ocorre através de uma burocratização do acesso a atendimento médico e jurídico, pela estrita necessidade da apresentação do laudo de transexualidade. Percebam que quando falamos sobre o tal “laudo”, enquanto um dispositivo normativo requerido para o acesso à cidadania, não é qualquer laudo, na medida em que um hipotético laudo atestando travestilidade jamais teria o mesmo valor que aquele atestando a transexualidade. Nem ao menos concebemos a ideia de um laudo de travestilidade, pois é a transexualidade a categoria almejada e regulada. Isso se torna especialmente cruel, na medida em que reconhecemos a existência de pessoas travestis que requerem certas demandas que são as mesmas das pessoas transexuais, e que são ameaçadas por este dispositivo de terror que é o laudo médico/psi/social. Em última instância, a exigência do laudo de transexualidade como mediador de direitos humanos é uma forma de excluir pessoas trans*, em especial, travestis, negrxs, deficientes e pobres.
Podemos, a partir do momento que compreendemos as relações de poder que articulam essa dicotomia identitária, fomentar novas formas de se pensar e entender as identidades travesti e transexual: extrapolando o “bom-senso” médico-psiquiátrico e jurídico; reafirmando a humanidade das pessoas trans*, em especial das travestis; exigindo a desburocratização do acesso a direitos civis para a população trans* e o respeito à auto identificação; apontando para a própria relação de poder (que procura em si mesma se mostrar inexistente para garantir sua dominação) que está sendo articulada pelos discursos médicos e jurídicos e denunciar os cinismos políticos no que se referem políticas públicas acerca da transgeneridade; problematizar, questionar e borrar os limites entre as duas categorias, ao apontar para os efeitos de pré-construído (o efeito que produz uma transparência e a necessidade de um já-dito para fazer sentido) delas, elaborar, enfim, formas emancipatórias, descolonizadas, empoderadoras e não prescritivas de “ser” travesti ou transexual e negar os entendimentos cisgêneros e patriarcais sobre nossas identidades trans*/femininas.
Isso significa que não estamos discutindo sobre se travestis fazem a cirurgia de redesignação sexual ou não ou outra coisa parecida (como frequentemente ocorrem em discussões homéricas e desnecessárias), mas sim entender que não existe forma correta e definitiva de ser travesti e transexual. Quero, portanto, acirrar e problematizar esses termos a ponto de extrapolar uma nova perspectiva que pode soar absurda que se refere em última instância para a impossibilidade de uma definição unívoca para tais palavras e que, portanto, “existem” e ao mesmo tempo “não existem” as “diferenças” entre travestis e transexuais.
Vamos entender como se constrói a subalternidade5 da identidade travesti em relação à transexual e não naturalizar esta relação. Trata-se de colocar estas palavras de volta ao lugar em que pertencem ao compreendê-las na história e, portanto, enquanto materialidades contraditórias do discurso. Desta forma, se tornam passíveis de serem contestadas as articulações ideológicas destas palavras que corroboram cissexismo. Por fim, cabe desvelar o absurdo e perversidade que é controlar e oprimir pessoas trans* por meio de suas próprias categorias identitárias (que são também, em última instância, palavras). O empoderamento se dará também através das palavras e acredito que as palavras “travesti” e “transexual” trazem à cena um palco privilegiado e necessário para práticas de resistências transfeministas.