Para a maioria das pessoas com identidade de gênero sócio-discordante ou
“transgêneros”, particularmente o segmento conhecido como
“crossdressers”, o armário é tido como a única saída. Em contextos
sociopolíticos altamente transfóbicos como o que vivemos, ele se insinua
como uma forma tranquila e segura de sobrevivência. Mas não é. Não
existe cidadania plena e muito menos dignidade humana para quem vive
permanentemente coagido a ser alguém que definitivamente não é.

Longe de ser um mecanismo de proteção individual onde se pode viver seus desejos e sua intimidade sem a permanente ameaça de bullying,
o armário é um dos instrumentos mais perversos e eficazes na repressão e
exclusão social das pessoas que nele se refugiam, peça fundamental de
um vasto aparato sociocultural voltado para arepressão às expressões de
gênero fora do binômio masculino-feminino. É o medo desse gigantesco
aparelho repressivo-coercitivo que estimula a população transgênera a
buscar a invisibilidade social por ele propiciada. O problema é o que o
armário não defende nem protege ninguém. Apenas condena as pessoas a um
gigantesco dispêndio de energia para criar e manter uma imagem pública
fictícia, mas aceitável, com a qual pensam merecer a apreço e o respeito
que já são devidos a todo e qualquer cidadão, independentemente da sua
condição. Ou seja, o armário promete às pessoas algo que já lhes
pertence, de direito e de fato. Trata-se, portanto, de um perfeito
embuste, uma muito sedutora armadilha, através do qual a sociedade
mantém controle quase absoluto sobre as manifestações de gênero fora do
binário masculino/feminino. É assim que, em nome de defenderem-se da
rejeição familiar e social, homens e mulheres armarizad@s contribuem
involuntariamente para a manutenção da ordem heterossexual-machista que
tanto os machuca e oprime, participando ativamente das suas instituições
(como o casamento e a família tradicionais) e comungando dos seus
valores (como a assimetria entre o binário de gêneros) que só servem
para fazê-los sofrer e se sentirem socialmente inadequados.
A população transgênera precisa
reconhecer o armário como instrumento de opressão, de exclusão, de
preconceito e discriminação, em vez de aceita-lo passivamente como uma
espécie de “saída honrosa”. É justamente por existir tanta gente
transgênera resignada em viver humilhada e acuada no armário que a
sociedade pode exibir orgulhosamente a sua hipócrita fachada de
“normalidade”, gabando-se de ser constituída por uma maioria de pessoas
cisgêneras, perfeitamente enquadradas às normas de conduta de gênero em
vigor. Pois sim. Como ninguém denuncia ninguém, continuamos vivendo a
grande farsa de um mundo ideal de dois gêneros onde, de quebra, a
maioria absoluta é heterossexual.
As coisas não seriam assim se a
população transgênera, que hoje vive confinada no armário, resolvesse
manifestar-se publicamente à luz do dia, exigindo seus direitos de
cidadania.
Mas se, por um lado, viver no armário
pode ser considerada uma clara demonstração de fraqueza e covardia em
assumir integralmente a própria identidade, por outro não se pode culpar
inteiramente as pessoas transgêneras que optam por esse caminho. Em
pleno século XXI, a despeito da conversa fiada sobre direitos humanos,
ainda são extremamente graves e dolorosas as perdas e retaliações
impostas a quem assume sua transgeneridade diante da família, da escola,
do trabalho e de outros grupos sociais onde atua. Desprezo, humilhação,
rejeição, exclusão e violência, além de penúria emocional e financeira
continuam sendo ocorrências corriqueiras na vida de quem assume
publicamente sua identidade transgênera.
Diante de tantos perigos e ameaças, a
decisão de viver no armário parece ser a mais razoável e atraente, por
ser aparentemente tão mais cômoda e segura. Entretanto, logo se
descobrirá sua face sombria, que obriga a pessoa armarizada a praticar
atos eticamente reprováveis como “enganar”, “mentir”, “esconder-se”,
“fingir”, “disfarçar” e “negar”. Não é a toa que, popularmente,
“armário” é sinônimo de “enrustido”, “medroso”, “covarde”, “mentiroso”,
“dissimulado” e “incapaz” de assumir sua condição de transgênero… O
problema é que expedientes tão estressantes quanto esses apenas abafam
temporariamente os conflitos íntimos, mantendo recalcadas (e portanto
não-resolvidas) algumas das características mais autênticas e naturais
da pessoa, características que vão continuar esperando indefinidamente a
oportunidade de se expressar no mundo exterior. Em outras palavras,
”armário” implica num imenso gasto de energia que não leva a
absolutamente coisa nenhuma.
“Armário” evidentemente é apenas uma
metáfora para designar a escolha e a adesão do indivíduo a um estilo de
vida baseado no disfarce, na mentira, no engodo, no segredo, na
dissimulação, na vida dupla, em detrimento de assumir publicamente a sua
identidade transgênera ou seja, um estilo de vida baseado na
transparência, na verdade e na integridade do indivíduo. Armário
implica, assim, em viver permanentemente dividido em duas pessoas: – a
pessoa que a gente realmente é e a pessoa que a gente quer fazer os
outros acreditarem que a gente seja.
O temor de ser descobert@ impõe a
necessidade da pessoa armarizada estar sempre alerta para “não dar
bandeira”. No armário, a espontaneidade da vida é substituída por uma
auto-vigilância contínua, onde tudo deve ser controlado, onde todas as
ações, contatos e movimentos diários da pessoa devem ser rigorosamente
medidos e monitorados a fim de que jamais escape nenhum sinal da sua
identidade oculta.

Em seu “isolamento do mundo”, a pessoa
armarizada acaba desenvolvendo uma absurda mania de perseguição, fazendo
com que os muros de proteção em torno de si acabem se transformando em
barreiras para qualquer tipo de ajuda do mundo exterior. Com uma visão
totalmente envergonhada e culposa da sua condição transgênera (e
totalmente distorcida, diga-se de passagem), a pessoa armarizada pensa
que deve evitar a freqüência a lugares que possam “comprometê-la” ou até
“denuncia-la”, assim como evitar qualquer tipo de contato ou
comunicação com pessoas que de algum modo possam associá-la à existência
da sua identidade oculta. Ou seja, tentando proteger-se de pessoas que
poderiam molesta-la, a pessoa armarizada corta o contato com pessoas
e/ou grupos que poderiam ajudá-la a sair do armário ou, no mínimo, a
viver nele de modo mais digno e confortável. Se é que pode falar de
conforto quando se vive confinad@ a um cubículo que é, antes de mais
nada, um cubículo “mental”…
Na realidade, “armário” é tão somente
uma projeção da mente da pessoa armarizada, fantasma onipresente de uma
sociedade que a força a agir contra seus próprios desejos, a ser escrava
de convenções de gênero absolutamente imbecis, com as quais não se
sente nem um pouco identificada e nem um pouco à vontade. Em sua
cegueira para defender-se de si própria, não vê que o armário não é seu
protetor, mas seu grande carrasco, obrigando-a sem piedade a manter o
compromisso com a ordem social que a rejeita e a exclui de todas as
formas e sob todos os pontos de vista.
Como vimos, embora o armário seja tido
como mecanismo de auto-proteção, a realidade é que ele só aprisiona,
escraviza e vicia, acarretando perdas altamente comprometedoras para a
saúde psíquica e para a qualidade de vida das pessoas transgêneras que
nele pensam estar instaladas em total segurança.

Por mais transtornos que o processo de
sair do armário possa causar na vida de uma pessoa transgênera, passar
toda a sua existência dentro dele é infinitamente mais cruel e
desgastante.
Com a diferença de que os esforços para
sair do armário sempre recompensarão a pessoa com ganhos expressivos em
termos de crescimento pessoal, liberdade, equilíbrio existencial e
consistência como ser humano, ao passo que permanecer indefinidamente
dentro dele representa apenas um consumo crescente de energia que leva
tão somente a mais retrocesso, mais conflitos existenciais e mais
estagnação.
Sair do armário – e permanecer fora
dele, que às vezes é mais difícil do que propriamente sair… – é uma
forma de resistência e auto-afirmação dos direitos de cidadania,
assegurados na própria constituição do país. Por mais complicada e
difícil que seja essa empreitada, ela representará sempre um grande
salto positivo na qualidade de vida de indivíduos que, de outra forma,
estariam condenados a viver para sempre apavorados, “confortavelmente”
abrigados em seus armários…